domingo, 27 de janeiro de 2013

Reflexões sobre políticas públicas para o setor cultural em 2013


    Inicia-se o ano, e, espera-se, nova vida. Novos mandatos para prefeitura, novos editais, novas perspectivas para o setor cultural em diferentes esferas de atuação do poder público. Momento oportuno de levantar algumas reflexões quanto às expectativas sobre as ações governamentais que se direcionarão ao fomento à indústria cultural brasileira, nos seus diversos segmentos e portes econômicos. Momento também de clarificar, desde já, uma opinião que, acima de tudo, visa ampliar o espaço de discussão sobre as escolhas dos gestores públicos realizadas no passado recente, e sob este olhar, apresentar as conseqüências que não fortalecem, em seus potenciais, os mecanismos já existentes.

MinC

    Comecemos pelo topo da cadeia: as ações do Ministério da Cultura visando a expansão das verbas públicas federais destinadas aos setores das artes. Na medida em que se enxerga a expansão do número de editais e o aumento significativo das verbas, ainda nos deparamos com uma imensa desproporção na distribuição das receitas para as regiões geográficas do país. É inegável que a Região Sudeste, tanto em números absolutos quanto em perspectiva ao seu tamanho econômico e demográfico, recebe mais recursos oriundos do Minc do que outras regiões. Nesta perspectiva, a própria Lei Rouanet (ou o futuro Bolsa-Cultura) privilegia em maior escala São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais em comparação às demais unidades federativas do país. E isto por uma questão muito simples: 90% das empresas qualificadas para se enquadrar na lei de dedução fiscal estão nestes estados.

    Como aumentar a distribuição destes recursos para outras regiões do país, de grande atividade cultural, mas com um perfil econômico diferente daquele que permite o sistema de deduções? Talvez de duas formas: a primeira é o Minc, em seu espaço decisório, tomar uma postura efetivamente federalista e democrática, e revisar as cotas de distribuição dos seus prêmios e fomentos na elaboração dos próximos editais. Há espaço para ações executivas, de comando mandatário – e isto estamos cansados de ver, com a elaboração de editais extremamente direcionados – e os novos diretores da Funarte não devem se abster de efetuar medidas de redistribuição dos fundos culturais. A segunda, aquela que é menos provável de ocorrer, é que algum deputado federal possa reunir força suficiente na Câmara dos Deputados e mudar a lei. Qual seria o problema se empresas que arrecadam seus tributos pelo SIMPLES NACIONAL pudessem destinar seu imposto para iniciativas culturais? Difícil encontrar resposta para essa dúvida, mas ainda não encontramos representatividade efetiva no Poder Legislativo, em todos os níveis.

O Bolsa-Cultura

     A grande promessa da hora é o Bolsa-Cultura. Cinquenta reais bolso dos trabalhadores para gastos em livros, CDs, DVDs, ingressos para show, cinemas, e..... teatro!
Esse deveria ser um grande momento para a ação das forças sindicais dos trabalhadores, tanto da cultura, quanto das futuras categorias privilegiadas. E explicarei em seguida. Mas em bom português, para o que realmente nos interessa aqui, pode-se resumir: da forma como esse programa será implantado, o setor teatral não verá um centavo!

     Comecemos pela operacionalização sugerida pelo governo, um cartão eletrônico que receberá a carga com o valor monetário. Obviamente, para o trabalhador beneficiado utilizar o recurso, terá que se destinar à rede credenciada apta a receber o recurso eletronicamente. Como será o credenciamento? Através das operadoras de cartões de crédito.  Portanto, o produtor cultural que se prestar a realizar uma atividade cultural e quiser vender ingressos recebendo bolsa-cultura terá que se afiliar a uma instituição financeira.

    Até aí, parece simples, basta se afiliar, correto? Mas a verdade é que os custos operacionais existentes para empresas utilizarem as maquinetas de cartão eletrônico são extremamente pesados, e só suportam aquelas que possuem volume financeiro que absorva estas despesas. Seria inviável, como exemplo, espetáculos que ocorrem na Usina do Gasômetro, ou nos Teatros Municipais de Porto Alegre, venderem ingressos pelo Bolsa-Cultura. E essa realidade se espalha, certamente, para todo o RS e para outros estados. Exigiria uma cadeia gigantesca de produtoras culturais afiliadas, o que financeiramente seria inviável.
   
    Por isso, os SATEDs nacionais devem permanecer inteiramente conectados com a elaboração da Lei Complementar que regulará a operacionalização deste benefício, de forma a defender, de fato, os pequenos produtores culturais, aqueles que realmente necessitam destas ações públicas que estimulam o surgimento de uma cadeia econômica sustentável. Se não conseguirem encontrar formas que protejam estes produtores dessa injusta carga de custos, criar mecanismos plurais e democráticos de acesso a estes mesmos recursos. (Um exemplo extremamente prático é o que faz a Associação Brique da Redenção, composta pelos feirantes que vendem seus produtos na rua José Bonifácio, em Porto Alegre: os clientes que desejam fazer suas compras com cartões de crédito se direcionam a um caixa centralizado, controlado pela associação, que, nos fechamentos diários, redistribui os recursos da vendas para os comerciantes).

      Não pensem que o Bolsa-Cultura não sairá. Com tanta expectativa de ganhos (e só aqui valeria mais um artigo inteiro), o setor financeiro deve ser o primeiro a oferecer aos seus trabalhadores o vale, estimulando as demais categorias a aderirem ao benefício. A expectativa é que, só no RS, por mês, apenas com os empregados bancários, cerca de R$ 1 milhão seja injetado no setor (em São Paulo e Rio de Janeiro, o montante é bem superior). Mas da forma como estamos nos locomovendo, nos sobrarão, novamente, migalhas; o grosso irá para as grandes redes de cinema, livrarias e mega-produtoras.

O Governo Tarso

     Nos últimos 30 anos, a classe artística gaúcha assistiu a um processo de sucateamento do aparelho público estadual. A ausência de políticas sérias de incentivo à economia e os erros seqüentes de gestão nos trouxeram um ciclo de abandono das estruturas físicas públicas, ausência de novos investimentos, e restrições severas às inúmeras pastas que compunham os diferentes governos.
     
     Nesse cenário, o óbvio fica ainda mais explícito: a cultura padeceu. Investimentos extremamente modestos compuseram a pauta de prioridades do setor cultural nos diferentes governos que assumiram o estado.
     
     Pois o governo Tarso Genro, através de seu secretário de cultura, o escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil, parece querer sinalizar uma mudança nesta tendência.  Neste ano, anunciou investimento direto de R$10 milhões através do seu Fundo de Cultura e ainda apresentou projeto de lei à Assembléia Legislativa, propondo majorações nos percentuais dedutíveis sobre o ICMS para a Lei de Incentivo à Cultura.
   
     Com toda a certeza, são iniciativas interessantes no sentido de expandir o investimento público no setor cultural, compreendendo seu imenso potencial econômico e suas complexidades. Mas estas ações ainda carecem de maior receita (o total investido pelo poder público estadual na área não corresponde a R$2,50 por pessoa, tendo em vista a população total do RS) e de medidas específicas que estimulem o empreendedorismo na área e o fortalecimento de um mercado auto-sustentável. Nesse sentido, me refiro a um processo de “formação de público” e de valorização do artista local, que está intimamente ligado com outra área sucateada: a educação.
     
      Por outro lado, a comunidade artística gaúcha ainda espera uma solução definitiva para a situação do Centro Cenotécnico do Estado e o Instituto de Artes Cênicas. A história já foi contada algumas vezes e não é novidade: o antigo prédio que abriga o importante local de produção cenográfica, possuindo espaço para ensaios, espetáculos e depósito de material, será destruído por força das obras de infraestrutura que acontecem na cidade para sediar a Copa do Mundo 2014. Diante de protestos e mobilizações, o início das obras foi suspenso, e o governo anunciou que pretende fornecer nova estrutura para abrigar as atividades lá exercidas. Mas até agora, cinco meses depois, nada foi concretizado – não se sabe onde será novo Centro Cenotécnico, e nem como será sua operacionalização. E a demora na tomada de decisão revela, mais uma vez, que não só investir, mas manter os atuais espaços públicos destinados à cadeia produtiva artística nunca será prioridade nos atuais modelos de administração governamentais.
      
      Quando há o investimento, ele é lento, pausado e restrito. É o caso da reforma da Casa de Cultura Mario Quintana, assumida pelo Banrisul (banco público do estado).  A reforma tem se dado em várias etapas, sempre com ênfase na recuperação da fachada e na manutenção do prédio, patrimônio histórico arrolado pelo IPHAE. Mas investimentos na infraestrutura interna, buscando a valorização do espaço e o conforto dos usuários, são urgentes, e mesmo ocupando a pauta da reforma, estes recursos ainda não foram destinados.

      Portanto, o caminho ainda está só no início. Mas certamente, depois do trauma gerado pelo governo Yeda, através do arrocho promovido pela secretária mão-forte Mônica Leal (que, vejam só, odiava teatro, mas amava ver cavalos sofrendo nas praias nos bizarros rituais modernos gauchescos), podemos novamente ter esperanças a partir das ações do governo atual.

O Grande Castelo de Areia das Artes Cênicas de Porto Alegre

     Porto Alegre vive uma situação específica bastante interessante no ponto de vista de resultados de escolhas de gestores públicos. Enquanto vemos medidas de sucesso, que estimulam o crescimento de uma “massa” interessada na produção artística local, enxergamos também a decadência das estruturas físicas públicas e o enfraquecimento da credibilidade dos processos públicos de seleção e fomento.

     É inegável o esforço nos últimos vinte anos dos agentes públicos que integram a pasta: diante da escassez cada vez maior de receitas, pequenas reformas foram feitas nos teatros municipais, o projeto da Descentralização da Cultura se fortaleceu com oficinas e espetáculos em circuito, o Fumproarte se solidificou como uma importante via de financiamento público à produção artística gaúcha. Da mesma forma, se enxerga um esforço nos meios de divulgação e a promoção de diferentes eventos gratuitos, entre festivais, simpósios e intercâmbio com artistas de outros estados e países.

    Entre as ações solidificadas, que deveríamos proteger e lutar pelo crescimento, destacam-se o Festival Porto Alegre em Cena e o Projeto da Descentralização da Cultura. O festival, que em breve celebrará duas décadas de existência, pode ser considerado hoje o maior evento do gênero do Brasil e um dos maiores da América Latina. Através dele, anualmente, a comunidade gaúcha, pouco acostumada com experiências cênicas internacionais, tem a oportunidade de celebrá-las, sejam clássicas ou contemporâneas, principalmente através da dança, do teatro ou pela música. Além disso, poucas iniciativas conseguem ser tão eficientes no ponto de vista econômico: mais de 70% das verbas são arrecadadas junto à iniciativa privada (por dedução fiscal ou não), Minc e Secretaria Estadual, reduzindo assim em cerca de 30% o investimento direto do caixa da prefeitura. Mais de R$ 2 milhões de reais são distribuídos ao mercado gaúcho, seja a artistas, produtoras ou prestadores de serviços por atividades que exercem ao longo dos breves 15 dias de realização. Beneficiam-se, além do público, que tem a oportunidade de assistir os eventos a preços acessíveis, comércio, rede hoteleira, restaurantes, transportadoras e centenas de prestadores de diferentes tipos de serviço. Esta estrutura deve ser defendida, com ênfase, por qualquer novo administrador que, por ventura, ouse assumir a difícil tarefa de manter o Festival.

     O Projeto da Descentralização da Cultura leva espetáculos de teatro, dança, circo e música, além de diversas oficinas, para as regiões da cidade afastadas dos bairros centrais onde se concentram as manifestações artísticas. Representa uma importante iniciativa de inclusão social, além de contribuir para a difícil tarefa que a educação pública enfrenta em seu cotidiano. Com o projeto da Descentralização, pôde se comprovar que arte e educação são elementos que caminham juntos na idéia da pluralização do conhecimento e do respeito às diferenças.

      Porém, quando nos voltamos para as instalações do Centro Municipal de Cultura Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues (local construído em 1978 que sedia a Sala Álvaro Moreyra, o Teatro Renascença, o Atelier Livre, a biblioteca pública municipal Josué Guimarães), temos uma total descrença no verdadeiro interesse dos governos na cultura. Cadeiras e assentos quebrados, varas de iluminação interditadas, palcos afundando, banheiros fechados para o uso do público, roubos nos camarins e ar-condicionado com defeito são alguns dos inconvenientes que o público é obrigado a suportar para poder assistir teatro. Como querer que haja público se não cuidamos do nosso próprio espaço? No Teatro de Câmara Tulio Piva, ainda mais antigo (construído em 1970 e reformado duas vezes, em 1999 e 2005), a situação é ainda mais triste: o telhado, ainda em estrutura de galpão, não resiste a intempéries, chegando ao ponto de espetáculos serem cancelados por desabamento parcial da estrutura. A cortina não fecha, os camarins têm problemas hidráulicos e a parte técnica pede reparos com urgência. Um teatro deve ser um local de celebração, de encanto, para a catarse, e não um espaço desconfortável que o artista precisa lutar contra inúmeros percalços para alcançar a plenitude de sua vocação.
     
     Em matéria de seleções, a Coordenação de Artes Cênicas de Porto Alegre tem sido confusa e arbitrária. Os resultados da seleção de projetos passam cada vez mais por avaliações imensuráveis – nunca se sabe, ao certo, quais são os critérios a serem adotados. Um dos programas que avançou muito neste sentido foi o Fumproarte: todo realizado pela internet, o proponente tem a oportunidade de acompanhar as etapas e avaliações de seus projetos diretamente no site da prefeitura. Porém, até aqui, verificamos um certo descompromisso por parte dos avaliadores, não dando explicações em seus pareceres ao não pontuar os projetos com notas máximas. Ora, toda a avaliação deve partir de que a nota é máxima: se desconta na medida em que se identificam falhas com seu devido esclarecimento. Mas muitas avaliações são atribuídas sem emissão de qualquer despacho ou nota técnica. Isto é objetivo? Ou melhor, democrático?

      É óbvio que qualquer seleção tem, em última instância, a subjetividade dos julgadores como instrumento decisório. É impossível, principalmente na arte, utilizar somente meios técnicos para a escolha de projetos contemplados. Mas a técnica, geralmente, caminha com a verdade e com a justiça. Se abrirmos mão dela para escolhermos nossos camaradas da vez, todo um sistema de financiamento público está desmoralizado e corre o risco de ruir.
     
    Outros editais ainda apresentam direcionamentos alarmantes e resultados questionáveis. A última estranha situação foi o Edital para “Novos Talentos” (e aqui, já nos deparamos com uma pergunta saliente: o que seria um “Novo Talento”?). No edital, estariam qualificados artistas que estão em início de carreira e que “não lograram consagração pelo público e pela crítica especializada”. Mas ora, ora, vejam só: o vencedor foi um ex-jurado do Prêmio Açorianos 2012, o prêmio mais importante do teatro portoalegrense. Como alguém pode saber tanto para ser jurado e pouco para ser “Novo Talento”? Fruto das arbitrariedades da CAC, do” compadrismo” que impregna as estruturas éticas da sociedade brasileira.
     
    Para terminar, como não falar da nova jogada da atual prefeitura? Chamou para ocupar o cargo de Secretario Adjunto de Cultura ninguém mais que o presidente do SATEDRS. Uma bela estratégia para amordaçar os instrumentos de reivindicação e fiscalização. Convocar o presidente de um sindicato para assumir função pública é aparelhar as organizações independentes, além de representar um ataque à democracia, em primeira análise. Cabe ao Sr. Presidente, em uma atitude ética, escolher qual lado ocupar. Ou continua sua ação sindicalista, ou assume funções públicas. Um sindicato não pode estar satisfeito, e estar dos dois lados é estar em cima do muro.

   Enfim, são apenas reflexões. Impressões de um cidadão qualquer que se honra em participar destas estruturas mencionadas, acreditando que o debate e a valorização da arte são mecanismos evidentes de desenvolvimento social e econômico. E um agente cultural que anseia por novos rumos, mais favoráveis, que estimulem a autocapacitação dos artistas, que seguem, infelizmente, juntando as migalhas lançadas ao vento.

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