Inicia-se o
ano, e, espera-se, nova vida. Novos mandatos para prefeitura, novos editais,
novas perspectivas para o setor cultural em diferentes esferas de atuação do
poder público. Momento oportuno de levantar algumas reflexões quanto às
expectativas sobre as ações governamentais que se direcionarão ao fomento à
indústria cultural brasileira, nos seus diversos segmentos e portes econômicos.
Momento também de clarificar, desde já, uma opinião que, acima de tudo, visa
ampliar o espaço de discussão sobre as escolhas dos gestores públicos realizadas
no passado recente, e sob este olhar, apresentar as conseqüências que não
fortalecem, em seus potenciais, os mecanismos já existentes.
MinC
Comecemos
pelo topo da cadeia: as ações do Ministério da Cultura visando a expansão das
verbas públicas federais destinadas aos setores das artes. Na medida em que se
enxerga a expansão do número de editais e o aumento significativo das verbas,
ainda nos deparamos com uma imensa desproporção na distribuição das receitas
para as regiões geográficas do país. É inegável que a Região Sudeste, tanto em
números absolutos quanto em perspectiva ao seu tamanho econômico e demográfico,
recebe mais recursos oriundos do Minc do que outras regiões. Nesta perspectiva,
a própria Lei Rouanet (ou o futuro Bolsa-Cultura) privilegia em maior escala São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais em comparação às demais unidades
federativas do país. E isto por uma questão muito simples: 90% das empresas
qualificadas para se enquadrar na lei de dedução fiscal estão nestes estados.
Como
aumentar a distribuição destes recursos para outras regiões do país, de grande
atividade cultural, mas com um perfil econômico diferente daquele que permite o
sistema de deduções? Talvez de duas formas: a primeira é o Minc, em seu espaço
decisório, tomar uma postura efetivamente federalista e democrática, e revisar
as cotas de distribuição dos seus prêmios e fomentos na elaboração dos próximos
editais. Há espaço para ações executivas, de comando mandatário – e isto
estamos cansados de ver, com a elaboração de editais extremamente direcionados
– e os novos diretores da Funarte não devem se abster de efetuar medidas de
redistribuição dos fundos culturais. A segunda, aquela que é menos provável de
ocorrer, é que algum deputado federal possa reunir força suficiente na Câmara
dos Deputados e mudar a lei. Qual seria o problema se empresas que arrecadam
seus tributos pelo SIMPLES NACIONAL pudessem destinar seu imposto para
iniciativas culturais? Difícil encontrar resposta para essa dúvida, mas ainda
não encontramos representatividade efetiva no Poder Legislativo, em todos os
níveis.
O
Bolsa-Cultura
A grande
promessa da hora é o Bolsa-Cultura. Cinquenta reais bolso dos trabalhadores
para gastos em livros, CDs, DVDs, ingressos para show, cinemas, e..... teatro!
Esse deveria
ser um grande momento para a ação das forças sindicais dos trabalhadores, tanto
da cultura, quanto das futuras categorias privilegiadas. E explicarei em
seguida. Mas em bom português, para o que realmente nos interessa aqui, pode-se
resumir: da forma como esse programa será implantado, o setor teatral não verá
um centavo!
Comecemos
pela operacionalização sugerida pelo governo, um cartão eletrônico que receberá
a carga com o valor monetário. Obviamente, para o trabalhador beneficiado
utilizar o recurso, terá que se destinar à rede credenciada apta a receber o
recurso eletronicamente. Como será o credenciamento? Através das operadoras de
cartões de crédito. Portanto, o produtor
cultural que se prestar a realizar uma atividade cultural e quiser vender
ingressos recebendo bolsa-cultura terá que se afiliar a uma instituição
financeira.
Até aí,
parece simples, basta se afiliar, correto? Mas a verdade é que os custos
operacionais existentes para empresas utilizarem as maquinetas de cartão
eletrônico são extremamente pesados, e só suportam aquelas que possuem volume
financeiro que absorva estas despesas. Seria inviável, como exemplo, espetáculos
que ocorrem na Usina do Gasômetro, ou nos Teatros Municipais de Porto Alegre, venderem
ingressos pelo Bolsa-Cultura. E essa realidade se espalha, certamente, para
todo o RS e para outros estados. Exigiria uma cadeia gigantesca de produtoras
culturais afiliadas, o que financeiramente seria inviável.
Por isso, os
SATEDs nacionais devem permanecer inteiramente conectados com a elaboração da
Lei Complementar que regulará a operacionalização deste benefício, de forma a
defender, de fato, os pequenos produtores culturais, aqueles que realmente
necessitam destas ações públicas que estimulam o surgimento de uma cadeia econômica
sustentável. Se não conseguirem encontrar formas que protejam estes produtores
dessa injusta carga de custos, criar mecanismos plurais e democráticos de
acesso a estes mesmos recursos. (Um exemplo extremamente prático é o que faz a
Associação Brique da Redenção, composta pelos feirantes que vendem seus
produtos na rua José Bonifácio, em Porto Alegre: os clientes que desejam fazer
suas compras com cartões de crédito se direcionam a um caixa centralizado,
controlado pela associação, que, nos fechamentos diários, redistribui os
recursos da vendas para os comerciantes).
Não pensem
que o Bolsa-Cultura não sairá. Com tanta expectativa de ganhos (e só aqui
valeria mais um artigo inteiro), o setor financeiro deve ser o primeiro a
oferecer aos seus trabalhadores o vale, estimulando as demais categorias a
aderirem ao benefício. A expectativa é que, só no RS, por mês, apenas com os
empregados bancários, cerca de R$ 1 milhão seja injetado no setor (em São Paulo
e Rio de Janeiro, o montante é bem superior). Mas da forma como estamos nos
locomovendo, nos sobrarão, novamente, migalhas; o grosso irá para as grandes
redes de cinema, livrarias e mega-produtoras.
O Governo Tarso
Nos últimos
30 anos, a classe artística gaúcha assistiu a um processo de sucateamento do
aparelho público estadual. A ausência de políticas sérias de incentivo à
economia e os erros seqüentes de gestão nos trouxeram um ciclo de abandono das
estruturas físicas públicas, ausência de novos investimentos, e restrições
severas às inúmeras pastas que compunham os diferentes governos.
Nesse
cenário, o óbvio fica ainda mais explícito: a cultura padeceu. Investimentos
extremamente modestos compuseram a pauta de prioridades do setor cultural nos
diferentes governos que assumiram o estado.
Pois o
governo Tarso Genro, através de seu secretário de cultura, o escritor e
professor Luiz Antonio de Assis Brasil, parece querer sinalizar uma mudança
nesta tendência. Neste ano, anunciou
investimento direto de R$10 milhões através do seu Fundo de Cultura e ainda
apresentou projeto de lei à Assembléia Legislativa, propondo majorações nos
percentuais dedutíveis sobre o ICMS para a Lei de Incentivo à Cultura.
Com toda a
certeza, são iniciativas interessantes no sentido de expandir o investimento
público no setor cultural, compreendendo seu imenso potencial econômico e suas
complexidades. Mas estas ações ainda carecem de maior receita (o total
investido pelo poder público estadual na área não corresponde a R$2,50 por
pessoa, tendo em vista a população total do RS) e de medidas específicas que
estimulem o empreendedorismo na área e o fortalecimento de um mercado
auto-sustentável. Nesse sentido, me refiro a um processo de “formação de
público” e de valorização do artista local, que está intimamente ligado com
outra área sucateada: a educação.
Por outro
lado, a comunidade artística gaúcha ainda espera uma solução definitiva para a
situação do Centro Cenotécnico do Estado e o Instituto de Artes Cênicas. A
história já foi contada algumas vezes e não é novidade: o antigo prédio que
abriga o importante local de produção cenográfica, possuindo espaço para
ensaios, espetáculos e depósito de material, será destruído por força das obras
de infraestrutura que acontecem na cidade para sediar a Copa do Mundo 2014.
Diante de protestos e mobilizações, o início das obras foi suspenso, e o
governo anunciou que pretende fornecer nova estrutura para abrigar as
atividades lá exercidas. Mas até agora, cinco meses depois, nada foi
concretizado – não se sabe onde será novo Centro Cenotécnico, e nem como será
sua operacionalização. E a demora na tomada de decisão revela, mais uma vez,
que não só investir, mas manter os atuais espaços públicos destinados à cadeia
produtiva artística nunca será prioridade nos atuais modelos de administração
governamentais.
Quando há o
investimento, ele é lento, pausado e restrito. É o caso da reforma da Casa de
Cultura Mario Quintana, assumida pelo Banrisul (banco público do estado). A reforma tem se dado em várias etapas,
sempre com ênfase na recuperação da fachada e na manutenção do prédio,
patrimônio histórico arrolado pelo IPHAE. Mas investimentos na infraestrutura
interna, buscando a valorização do espaço e o conforto dos usuários, são
urgentes, e mesmo ocupando a pauta da reforma, estes recursos ainda não foram
destinados.
Portanto, o
caminho ainda está só no início. Mas certamente, depois do trauma gerado pelo
governo Yeda, através do arrocho promovido pela secretária mão-forte Mônica
Leal (que, vejam só, odiava teatro, mas amava ver cavalos sofrendo nas praias
nos bizarros rituais modernos gauchescos), podemos novamente ter esperanças a
partir das ações do governo atual.
O Grande Castelo
de Areia das Artes Cênicas de Porto Alegre
Porto Alegre
vive uma situação específica bastante interessante no ponto de vista de
resultados de escolhas de gestores públicos. Enquanto vemos medidas de sucesso,
que estimulam o crescimento de uma “massa” interessada na produção artística
local, enxergamos também a decadência das estruturas físicas públicas e o
enfraquecimento da credibilidade dos processos públicos de seleção e fomento.
É inegável o
esforço nos últimos vinte anos dos agentes públicos que integram a pasta:
diante da escassez cada vez maior de receitas, pequenas reformas foram feitas
nos teatros municipais, o projeto da Descentralização da Cultura se fortaleceu
com oficinas e espetáculos em circuito, o Fumproarte se solidificou como uma
importante via de financiamento público à produção artística gaúcha. Da mesma
forma, se enxerga um esforço nos meios de divulgação e a promoção de diferentes
eventos gratuitos, entre festivais, simpósios e intercâmbio com artistas de
outros estados e países.
Entre as
ações solidificadas, que deveríamos proteger e lutar pelo crescimento, destacam-se
o Festival Porto Alegre em Cena e o Projeto da Descentralização da Cultura. O
festival, que em breve celebrará duas décadas de existência, pode ser
considerado hoje o maior evento do gênero do Brasil e um dos maiores da América
Latina. Através dele, anualmente, a comunidade gaúcha, pouco acostumada com experiências
cênicas internacionais, tem a oportunidade de celebrá-las, sejam clássicas ou
contemporâneas, principalmente através da dança, do teatro ou pela música. Além
disso, poucas iniciativas conseguem ser tão eficientes no ponto de vista
econômico: mais de 70% das verbas são arrecadadas junto à iniciativa privada
(por dedução fiscal ou não), Minc e Secretaria Estadual, reduzindo assim em
cerca de 30% o investimento direto do caixa da prefeitura. Mais de R$ 2 milhões
de reais são distribuídos ao mercado gaúcho, seja a artistas, produtoras ou
prestadores de serviços por atividades que exercem ao longo dos breves 15 dias
de realização. Beneficiam-se, além do público, que tem a oportunidade de
assistir os eventos a preços acessíveis, comércio, rede hoteleira,
restaurantes, transportadoras e centenas de prestadores de diferentes tipos de
serviço. Esta estrutura deve ser defendida, com ênfase, por qualquer novo
administrador que, por ventura, ouse assumir a difícil tarefa de manter o Festival.
O Projeto da
Descentralização da Cultura leva espetáculos de teatro, dança, circo e música,
além de diversas oficinas, para as regiões da cidade afastadas dos bairros
centrais onde se concentram as manifestações artísticas. Representa uma
importante iniciativa de inclusão social, além de contribuir para a difícil
tarefa que a educação pública enfrenta em seu cotidiano. Com o projeto da
Descentralização, pôde se comprovar que arte e educação são elementos que
caminham juntos na idéia da pluralização do conhecimento e do respeito às
diferenças.
Porém,
quando nos voltamos para as instalações do Centro Municipal de
Cultura Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues (local construído em 1978 que sedia a Sala Álvaro
Moreyra, o Teatro Renascença, o Atelier Livre, a biblioteca pública municipal
Josué Guimarães), temos uma total descrença no verdadeiro interesse dos
governos na cultura. Cadeiras e assentos quebrados, varas de iluminação
interditadas, palcos afundando, banheiros fechados para o uso do público,
roubos nos camarins e ar-condicionado com defeito são alguns dos inconvenientes
que o público é obrigado a suportar para poder assistir teatro. Como querer que
haja público se não cuidamos do nosso próprio espaço? No Teatro de Câmara Tulio
Piva, ainda mais antigo (construído em 1970 e reformado duas vezes, em 1999 e
2005), a situação é ainda mais triste: o telhado, ainda em estrutura de galpão,
não resiste a intempéries, chegando ao ponto de espetáculos serem cancelados
por desabamento parcial da estrutura. A cortina não fecha, os camarins têm
problemas hidráulicos e a parte técnica pede reparos com urgência. Um teatro
deve ser um local de celebração, de encanto, para a catarse, e não um espaço
desconfortável que o artista precisa lutar contra inúmeros percalços para
alcançar a plenitude de sua vocação.
Em matéria
de seleções, a Coordenação de Artes Cênicas de Porto Alegre tem sido confusa e
arbitrária. Os resultados da seleção de projetos passam cada vez mais por avaliações
imensuráveis – nunca se sabe, ao certo, quais são os critérios a serem
adotados. Um dos programas que avançou muito neste sentido foi o Fumproarte:
todo realizado pela internet, o proponente tem a oportunidade de acompanhar as
etapas e avaliações de seus projetos diretamente no site da prefeitura. Porém,
até aqui, verificamos um certo descompromisso por parte dos avaliadores, não
dando explicações em seus pareceres ao não pontuar os projetos com notas
máximas. Ora, toda a avaliação deve partir de que a nota é máxima: se desconta
na medida em que se identificam falhas com seu devido esclarecimento. Mas
muitas avaliações são atribuídas sem emissão de qualquer despacho ou nota
técnica. Isto é objetivo? Ou melhor, democrático?
É óbvio que
qualquer seleção tem, em última instância, a subjetividade dos julgadores como
instrumento decisório. É impossível, principalmente na arte, utilizar somente
meios técnicos para a escolha de projetos contemplados. Mas a técnica,
geralmente, caminha com a verdade e com a justiça. Se abrirmos mão dela para
escolhermos nossos camaradas da vez, todo um sistema de financiamento público
está desmoralizado e corre o risco de ruir.
Outros
editais ainda apresentam direcionamentos alarmantes e resultados questionáveis.
A última estranha situação foi o Edital para “Novos Talentos” (e aqui, já nos
deparamos com uma pergunta saliente: o que seria um “Novo Talento”?). No
edital, estariam qualificados artistas que estão em início de carreira e que “não
lograram consagração pelo público e pela crítica especializada”. Mas ora, ora,
vejam só: o vencedor foi um ex-jurado do Prêmio Açorianos 2012, o prêmio mais importante
do teatro portoalegrense. Como alguém pode saber tanto para ser jurado e pouco
para ser “Novo Talento”? Fruto das arbitrariedades da CAC, do” compadrismo” que
impregna as estruturas éticas da sociedade brasileira.
Para
terminar, como não falar da nova jogada da atual prefeitura? Chamou para ocupar
o cargo de Secretario Adjunto de Cultura ninguém mais que o presidente do
SATEDRS. Uma bela estratégia para amordaçar os instrumentos de reivindicação e
fiscalização. Convocar o presidente de um sindicato para assumir função pública
é aparelhar as organizações independentes, além de representar um ataque à
democracia, em primeira análise. Cabe ao Sr. Presidente, em uma atitude ética,
escolher qual lado ocupar. Ou continua sua ação sindicalista, ou assume funções
públicas. Um sindicato não pode estar satisfeito, e estar dos dois lados é
estar em cima do muro.
Enfim, são
apenas reflexões. Impressões de um cidadão qualquer que se honra em participar
destas estruturas mencionadas, acreditando que o debate e a valorização da arte
são mecanismos evidentes de desenvolvimento social e econômico. E um agente
cultural que anseia por novos rumos, mais favoráveis, que estimulem a
autocapacitação dos artistas, que seguem, infelizmente, juntando as migalhas
lançadas ao vento.